Sábado, 28/5 a terça, 31/5 - Nova mudança no perfil do Caminho. Acabaram definitivamente as árvores sombreando as trilhas e começaram as estradinhas rurais, tais como as do Caminho da Fé, no Brasil. Só que aqui não tem trânsito de veículos. De Logroño até Villafranca Montes de Oca são só estradas de terra, largas, assim tipo três metros de largura, margeadas por plantações de trigo, cevada e lúpulo. Acabaram as plantações de uva. Em La Rioja, a última província que atravessamos, é produzido o melhor vinho que eu já tomei aqui (que os nativos de outras províncias não me leiam)!
Aliás, o vinho faz parte das refeições aqui, que são servidas da seguinte forma: primeiro, uma entrada, que você escolhe normalmente entre pelo menos umas quatro possibilidades (há paella e saladas, por exemplo). Depois o 2º prato, quente, que você também pode escolher entre umas quatro alternativas (peixe, porco, etc.). E “postre” (sobremesa), também com opções (normalmente sorvete, pudins e outras coisas). Sempre acompanha a refeição água, pão tipo italiano e vinho. Sempre servem o vinho que é produzido na própria região. Estou tomando vinho no almoço e no jantar. Já estou até vendo, daqui a pouco vou começar a fazer xixi vermelho...
Dormimos em Ciriñuela, num hostal, cujo proprietário, Rubén, é casado com uma brasileira, Ilka, de Recife. Que aliás, cozinha maravilhosamente bem. Enquanto jantávamos, no telão do restaurante estava passando a final da Champions League, Manchester x Barcelona e toda a população do bairro estava lá, assistindo. O bairro, durante o inverno, é habitado por apenas 30 pessoas, dos quais cinco são crianças. As temperaturas, nesse período, chegam a -20º C.
Domingo - No Caminho, depois de Villafranca Montes de Oca, há um monumento em homenagem a espanhóis mortos em 1936, por fuzilamento, no local. Não tenho como pesquisar agora para saber se foi na guerra mundial ou na guerra civil. Só sei que há uma placa no monolito citando 300 mortos. Encontramos ali um morador da cidade que nos contou que as pessoas foram fuziladas e enterradas ali mesmo e, que estão fazendo escavações para localizar as ossadas. Segundo ele foram 400 as mortes e até agora só encontraram 47 ossadas. Vão continuar cavando na região buscando mais corpos. Uma das frases que está no monolito diz algo mais ou menos assim: “As mortes não foram em vão. Os fuzilamentos, sim”. Muito triste.
Fato pitoresco do dia: almoçávamos tranquilamente hoje, quando um usuário do mesmo restaurante se aproximou de mim e falou, em alemão: “Com licença, senhor, de onde vocês são?” Quando começamos a tentar explicar, ele caiu na gargalhada e falou: “Eu também sou brasileiro. Estava desconfiando que vocês eram de lá por causa da conversa, depois eu vi a bandeirinha na camisa e aí eu tive certeza, e resolvi fazer a brincadeira”. Era o Paulo César, carioca, que também está fazendo o Caminho, só que a pé. Já é a sua segunda vez. Em sua primeira passagem ele havia conhecido uma alemã e acabaram vivendo uma história juntos por oito meses. Ela passou quatro meses no Rio, ele outros quatro na Alemanha, mas acabaram se separando, prometendo se re-encontrar 10 anos depois. E lá estava ele, decorrido este tempo, novamente no Caminho. Ficou bastante tempo conosco, enquanto terminávamos o almoço. Aí, apareceu um funcionário do local, que é restaurante, albergue e bar e nos disse que havia colocado as bicicletas no bar porque estava chovendo. Fomos ver rapidamente e a chuva caía a cântaros. Foi o primeiro dia que encontramos chuva no Caminho. Esperamos passar, para prosseguir.
Aí, duas surpresas: 1º, o Caminho volta a ser uma trilha em meio a florestas, com belíssimas paisagens e imagens de cartão postal. A 2ª. é ruim: quando chegamos em Agés, não encontramos mais lugares vagos nos albergues, os quatro lotados. Um dos hospitaleiros nos indicou uma cidade próxima, Olmos, que fica a cerca de 3,8 km do local. A próxima cidade seria Atapuerca, mas ele disse que também estava lotado. Como Atapuerca está no Caminho e para ir a Olmos teríamos que passar lá, fomos em frente. Não estamos fazendo reservas porque está difícil determinar antecipadamente a distância a ser percorrida no dia seguinte, em função de várias razões, como subidas longas que reduzem nossa velocidade ou a possibilidade de problemas nas bicicletas. Pois bem, chegando a Atapuerca, de fato o Albergue estava lotado. Uma senhora que estava entrando, viu nosso problema e nos indicou um outro albergue, mais acima, perto da igreja. Ao nos dirigirmos para lá, vimos uma Casa Rural, espécie de hotel que existe por aqui e decidimos ir ver. Conseguimos “una habitación doble”, muito boa e ficamos lá. Mais caro (50 euros), porém extremamente mais confortável do que qualquer albergue...
Para guardar as bicicletas, foi engraçado. A dona do hotel nos disse para que as guardássemos no albergue. Ao abrirmos a porta, puxando um cordão pelo lado de fora, um senhor que estava lá e que pensamos que fosse o responsável pelo albergue, não permitiu a colocação das bicicletas. Não, não, disse ele, aqui, não, não. Ponham lá fora, e nos indiciou um local, assim, meio matinho, atrás de uma casinha da companhia de eletricidade. Estávamos já conformados em deixar as bicicletas por ali e tentávamos ajeitá-las, quando Jaqueline, dona do hotel, viu e veio até nós, dizendo: Não, não, não é aqui. Venham comigo. Abriu a porta do albergue, a mesma onde estivemos antes e nos mandou colocar ali. Quando dissemos a ela o que aconteceu, ela disse: Esse cara não manda nada, quem manda sou eu. Ele é só um hóspede.
Cretino!
A Casa Rural que ficamos chama-se Papasol.
Segunda-feira – Hoje, a intenção era ir até Hontanas, porém duas coisas intervieram para impedir isso. Primeiro, perdemos muito tempo em Burgos, procurando uma “tienda de bicis”, para comprar um pneu para a minha magrela. Só na 3ª. loja conseguimos atendimento (a 1ª. estava fechada às 11:50 h da manhã; e na 2ª., nem nos deram bola: entrei, esperei, ninguém sequer olhou para mim, saí). Um transeunte nos indicou um representante da Merida, a umas quatro quadras do Caminho, onde acabamos sendo muito bem atendidos e com rapidez. Trocaram o pneu e regularam as marchas das duas bicicletas, em menos de meia hora. Beleza. Indicamos a quem precisar. Segundo, quando chegamos a Hornillos del Camino, a chuva chegou junto. Os últimos 200 metros já pedalamos sob aquele início de chuva, com pingos grossos caindo sobre nós. Adiante havia um tempo fechado e escuro, prenunciando chuva e muita. Decidimos parar. Eram 4 h da tarde. Não havia lugar no único hostal da cidade e fomos ao albergue municipal. Lotado. Mas a hospitaleira disse que poderíamos dormir no ginásio de esportes, que estava preparado para uma situação dessas. Sem alternativas, aceitamos. É um ginásio grande, que eles utilizam principalmente para a prática de “balón”, aquele jogo em que eles põem uma espécie de concha como extensão do braço e lançam a “pelota” contra a parede. Mas tem também equipamento para futebol e “baloncesto”. Haviam 26 liteiras espalhadas pela quadra, encostadas nas paredes. No início, éramos só quatro, nós e um casal nórdico, provavelmente da Noruega ou Alemanha. Logo depois chegaram mais dois homens. Só quero ver amanhã, quando levantarmos, quantos vão estar aqui.
As instalações sanitárias são novas, há uma repartição para homens e outra para mulheres, cada uma com duas pias, secador elétrico de mãos, um compartimento fechado para banho, com box e outro compartimento fechado com um vaso sanitário. Água quente tanto nas pias quanto no chuveiro. Só não tem toalhas e sabonete. Custo: 5 euros por pessoa.
O Caminho hoje voltou a ser a trilha tradicional, com dois metros de largura, calçada com terra branca e pedriscos, alternada com trechos em asfalto e estradas vicinais. Só a saída de Atapuerca é que foi tétrica: em aclive, repleta de pedras de todos os tamanhos, tornando impossível o pedal. Ao lado esquerdo, uma cerca de arame farpado com uns três metros de largura, separando uma área militar. A região é utilizada para exercícios de tiro. Enquanto passávamos, escutávamos ao longe o pipocar de armas de fogo de grosso calibre, que ao ouvir pela primeira vez, até pensei que fossem explosões de dinamite em uma pedreira.
Terça-feira – Tínhamos que abandonar o albergue até as 8 h da manhã. Eles precisam de tempo para re-arrumar o local para a turma que começa a chegar a partir das 13 h. Assim, por volta de 10, 5 para as 8, partimos. Sem café da manhã, o bar estava fechado e não vimos nenhuma “panaderia”.
Surpresa agradável: o Caminho hoje é lindo! Aquela trilha tradicional, de cerca de 2 m de largura, bem cuidada, cercada de plantações de ambos os lados, sem árvores, porém com as margens cheias de flores silvestres, o tempo todo. Vermelhas, azuis, amarelas, brancas, rosas. Há uma florzinha amarela que tem um perfume agradabilíssimo. Uma coisa que notei sobre as propriedades agrícolas, é que elas não têm cercas separando-as. E 99% delas não têm casa nenhuma, os proprietários moram nos “poblados”. Vão ao trabalho de carro. Carro mesmo, não são caminhonetes, não. E para se tornarem altamente mecanizáveis, que aliás, são, retiraram as pedras e as amontoaram, aumentando a área arável e evitando danos aos equipamentos agrícolas.
Estamos hoje em Carrion de Los Condes, uma das pequena cidades do Caminho. Conseguimos lugar numa “pension”, a 22 euros o quarto de casal. Pedalamos hoje 65 km, a maior parte do tempo o Caminho foi de planos e poucas subidas e descidas. No total já percorremos 394 km. Estamos perto da média de 50 km/dia que havíamos planejado. Não fosse a parada em Pamplona (toda a tarde), a necessidade de trocar o pneu da bicicleta e a chuva, estaríamos tranquilamente dentro dos planos...
Saudades do Brasil e de todos aí. Até o próximo.
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