sábado, 26 de março de 2011

6º dia (Caminho da Fé): de Serra dos Limas a Borda da Mata

A saída da casa da Dona Natalina já começa com uma subida. Mas a estrada é boa e é prazeroso pedalar. A gente vai seguindo as setas amarelas, através de cafezais, percorrendo estradas vicinais de terra batida, firmes e lisas. O café é plantado por todos os lados, mesmo nas encostas das montanhas e eu fico me perguntando como é que eles fazem para colher o produto naquelas ribanceiras. Devem ter algum método bem prático, que eu desconheço, para evitar que os grãos rolem ladeira abaixo...
Pouco tempo depois, chegamos a um declive fantástico, antes do povoado de Barra. A estrada tem muitas pedras soltas e nós descemos sempre devagar, porque não temos coragem de soltar a magrela descida abaixo. Às vezes temos até que dar uma paradinha, no meio do trecho, para descansar as mãos, doloridas de tanto acionar os freios. O pessoal, muito simpático, da Pousada São João, onde vamos aportar ao completar a descida, certa vez nos disse que um bombeiro ciclista já havia feito aquele percurso em apenas três minutos! É muita coragem para o meu gosto! Uma queda ali certamente vai provocar muitas escoriações, prá não dizer ossos quebrados...


Foto 01: entrada da Pousada São João
  Na São João (foto 01) sempre nos tratam muito bem, como, aliás, é praxe, neste Caminho. Certa vez, em uma das passagens por lá, logo de manhã, não havíamos tido frutas no café. Uma penca de bananas-prata enfeitava a fruteira sobre a mesa. “Morri” de vergonha quando minha esposa pediu: “Posso pegar uma banana?” Com toda a gentileza do pessoal, acabamos saindo de lá com duas bananas cada um (verdadeiras, e não aquelas que se mostra dobrando o cotovelo e colocando o punho fechado do outro braço sobre ele). Sempre ouço referências elogiosas à estadia nesta Pousada. Nunca ficamos lá, mas todo mundo fala bem...

Foto 02
Logo depois da saída de Barra, há uma bica generosa de água, despencando de uma altura de mais de três metros (fotos 02 e 03). Em época de calor, é uma dádiva dos céus.  Há um caminho de pedras para atravessar o córrego  e uma pequena caixa d’água com torneira, para abastecer as caramanholas. Os barrancos, no local, são recobertos por marias-sem-vergonha, colorindo a vegetação e embelezando o lugar. É inevitável fotografar para rever sempre o bonito lugar.
Foto 03
 Depois de toda aquela descida, agora temos que subir, claro. Mas o trecho de 15 quilômetros até Crisólia é relativamente tranqüilo. Tanto é que não demoramos muito para chegar. Neste ponto já é hora de almoço e uma parada no Bar da Zéti (foto 04) é fundamental. Comida simples, mas muito saborosa e a atenção da Zéti também é algo prá não se esquecer. Sempre de bom humor, atende a todos com imensa alegria e satisfação. A gente sai dali alimentado de corpo e espírito.

Foto 04: com a sempre alegre Zétti
 A próxima cidade é Ouro Fino, imortalizada na clássica música sertaneja. Os sete quilômetros que a separam de Crisólia são percorridos com muita facilidade, não há subidas acentuadas. E a cidade se promove, instalando na entrada um portal alusivo ao tema (foto 06). As fotos do local estão certamente nos álbuns de todos aqueles que peregrinam por lá.
Descendo para a cidade, ao começar a subida, do outro lado, há um mercadinho, à esquerda, onde você encontra muita simpatia e acolhimento pelos proprietários. Eles possuem uma pequena gruta, nos fundos (foto 05), onde, quem desejar, pode fazer sua oração. Sentimos muita vibração positiva naquele lugar. Quando passamos lá, pela última vez, havia uma placa do Caminho da Fé na frente do estabelecimento. Mas, ao olhar hoje a lista de pousadas e locais para carimbar a credencial, não vi referência ao local. Não sei dizer se ainda é como falei...

Foto 05: A gruta em Ouro Fino

Nunca tivemos oportunidade de dormir em Ouro Fino, por isso não posso opinar sobre os diversos pontos de parada existentes.

Foto 06 - O menino da porteira

Depois de Ouro Fino, Inconfidentes. O trecho, de 10 km, também não apresenta maiores dificuldades. Logo na entrada da cidade, a parada obrigatória no bar do Maurão (foto 07). Mais uma pessoa finíssima no atendimento ao peregrino e onde a gente pode saber qualquer novidade sobre o Caminho. O Maurão está sempre disposto a ajudar. Ele faz o Caminho uma vez por ano, salvo falha da memória, há 17 ou 18 anos. Ou 19. Se me enganei, desculpe aí, tá, Maurão!
Certa vez, querendo tomar um copo de vinho, perguntei a ele: “Você tem vinho aberto aí”? E ele me respondeu: “Não! Se deixar aberto entra mosca”!
Tóim! Quem mandou não fazer a pergunta corretamente?

Foto 07: Com o Maurão, em Inconfidentes
Em Inconfidentes, já pernoitamos nas pousadas Caminho da Fé e na Águas Livres. A primeira é muito boa, mais nova e, embora não sirvam refeições, há um pequeno e simples restaurante bem ao lado, onde já jantamos ao menos em duas ocasiões diferentes. E a segunda (fotos 08 e 09), que fica seis quilômetros à frente do bar do Maurão, num local particularmente aprazível, um sítio muito gracioso com a casa principal cercada de primaveras, tudo cuidado com muito carinho pelo Oswaldo e esposa. Também é muito bom, com a vantagem de poder se alimentar no próprio local, inclusive com verduras da horta cultivada ali mesmo. Mas é bom ter o cuidado de reservar antes. Aliás, não só aqui, em todos os locais, é sempre bom telefonar antes para fazer as reservas, evitando possíveis surpresas. Que às vezes acontecem mesmo você tendo feito a reserva. Vejam a historinha a seguir.
Quando ficamos aqui a primeira vez, em julho de 2008, aconteceu um episódio engraçado. Fizemos a reserva, por telefone, falando com a filha do Oswaldo. Na época ela tinha um neném e em meio aos afazeres de mãe, esqueceu-se de anotar ou comunicar os pais. Naquela oportunidade também fazia o caminho uma família de Cotia (O Júnior, a esposa, a sogra e dois filhos menores), que havíamos conhecido em São Roque. Vínhamos fazendo o caminho mais ou menos juntos, passávamos a noite nos mesmos lugares, os quais indicávamos para eles, por ser a primeira vez deles. Saíamos mais cedo e eles sempre acabavam nos alcançando e passando. Um deles dirigia uma caminhonete de apoio e outros dois pedalavam. Pois bem. Quando chegamos à entrada da Pousada Águas Livres, que fica um pouquinho afastada da estrada, encontramos o filho mais velho do Júnior, dizendo que a entrada da pousada estava fechada. “Como assim, nós fizemos a reserva”, dissemos. 
Mas estava fechada mesmo, o portão tinha corrente, cadeado e tudo. E agora? O Júnior estava tentando contato com o Oswaldo, mas não estava conseguindo. Telefones celulares não pegavam. Para piorar as coisas, a esposa dele, que estava dirigindo o carro de apoio, não encontrava o lugar. Com muito custo, um dos celulares entrou em serviço e conseguiu-se contato com a casa do Oswaldo, mas nem ele, nem a esposa, estavam. Uma sobrinha dele se prontificou a ajudar e disse que iria para o local para abrir o portão, até chegar o Oswaldo. Enquanto isso, o Júnior tentava orientar a esposa a achar o lugar. Passado algum tempo, chegou a sobrinha do Oswaldo, mas ao tentar abrir o portão, as chaves não funcionavam. Não houve quem conseguisse abrir o cadeado. Ela mesma sugeriu: “Vamos pular o portão, aí eu abro a casa, vocês entram e podem descansar ou ir tomando banho até meu tio chegar”.  Sem alternativa, cansados da pedalada do dia, foi o que fizemos. Passamos as bicicletas por cima do portão, saltamos e entramos, pois a casa ela conseguiu abrir. Não demorou muito, chegaram o Oswaldo e a esposa e pudemos nos acomodar nos quartos, enquanto eles preparavam o jantar. Esclareceram que não sabiam que íamos chegar e depois das explicações, vimos que tudo aconteceu porque a filha deles se esquecera de avisá-los.

Foto 10 - Com Oswaldo, esposa e um grupo de peregrinos, entre Inconfidentes e Borda da Mata
Já havia escurecido e a esposa do Junior estava em Borda da Mata, havia passado pelo local e não havia visto a entrada da pousada. Já eram cerca de oito horas da noite, quando ela conseguiu reencontrar sua família.
Afinal, o jantar foi muito bom e pudemos dormir numa boa, repondo energias para a jornada do dia seguinte.

A próxima cidade é Borda da Mata, a 15 km da Pousada Águas Livres. Neste trecho (fotos 10 e 11) ainda não se enfrentam as piores subidas, que virão antes de Estiva, de Paraisópolis mas, sobretudo, depois de Luminosa. Com tranqüilidade, ao final da tarde, chegamos ao Hotel Village, onde costumamos pernoitar quando dormimos aqui. Nunca saímos para comer, a gente acaba sempre pedindo uma pizza por telefone, comemos no próprio quarto e vamos dormir. É bom dormir cedo, porque o caminho é árduo e trechos mais duros nos esperam pela frente...

domingo, 13 de março de 2011

As histórias do Caminho (da Fé)


Foto 01
 Neste Carnaval das floradas de paineiras (foto 01), ipês dos jardins (foto 02),  e lírios do brejo (foto 03) com seu inconfundível perfume, entre tantas outras, saímos mais uma vez no pedal para curtir a natureza. A intenção era percorrer de Divinolândia a São Roque da Fartura, no 1º dia, pela trilha de terra do Caminho da Fé (34 km); no 2º dia, seguindo também o Caminho da Fé de trás para frente, de São Roque até a Pousada da Dona Cidinha (13 km); voltar no 3º dia da D. Cidinha para São Roque e daí para Divinolândia, no 4º dia, também no inverso do CF.
Foto 02


Foto 03
Mas, com toda a chuva que desabou nesses quatro dias de Carnaval, ao tentarmos sair de Divinolândia, verificamos que não havia condições para a pedalada pela terra: a lama e as poças de água se espalhavam pela estrada, com tal intensidade, que julgamos mais prudente ir pelo asfalto. Havia muito risco de quedas e ferimentos, considerando que não dava para saber exatamente onde estaríamos metendo os pneus da bici... 52 km e cinco horas depois, sempre sob chuva, chegamos à Pousada Paina (pronuncia-se “paína”, porque é o sobrenome dos proprietários, de ascendência espanhola e não “pâina”, como seria de se imaginar, se se referisse ao fruto da paineira) em São Roque da Fartura. A pousada (foto 04) está instalada a 800 metros do núcleo habitacional do distrito e é extraordinariamente bem dirigida pela Dona Clair e Sr. Félix, conhecido na cidade como Felão. Gente fora de série, que dedica um imenso carinho e atenção aos peregrinos que ali aportam para o merecido descanso após uma dura jornada. E foi ali que curtimos, no primeiro e no terceiro dia, assim como, no segundo, na Pousada da Dona Cidinha, deliciosas histórias e boas gargalhadas, nas conversas com os anfitriões, assim como com os demais peregrinos e outros visitantes. E são estas histórias que eu vou contar aqui, hoje, para vocês, enquanto vou falando da nossa mais recente aventura.


Foto 04
Chegamos às 5 da tarde, mais encharcados que o Bob Esponja. Tiramos a roupa molhada, tomamos um reconfortante banho quente, enquanto a Dona Clair já punha a roupa suja para lavar no tanquinho. Depois, de chinelos emprestados pelo Sr. Félix, sentamo-nos à mesa, na minha cabeça, para esperar o jantar. Mas, Dona Clair tinha outras idéias: serviu-nos café e leite quente com bolachinhas de nata e rosca. Foram as mais suaves, saborosas e delicadas bolachinhas de nata que eu já comi. A promessa era para, no dia seguinte, antes de sairmos para a Dona Cidinha, conhecermos os bezerros da propriedade e a parte de cima da pousada, a casa antiga que pode abrigar até 15 hóspedes. Enquanto conversávamos, Dona Clair não saía da cozinha. Não demorou muito para o jantar ficar pronto: salada de tomate e alface, colhida ali mesmo, da hortinha atrás da casa, que o Sr. Félix foi buscar instantes antes de servir; feijão, arroz, carne de panela e abobrinha batidinha refogada e deliciosa. Antes de dormir, Dona Clair ainda fez um chá. De alfavaca. Alguém conhece? É uma planta cujo aroma lembra cravo da índia. Uma delícia!
O dia seguinte, prá variar, amanheceu chovendo. Que novidade! Não foi possível executar o programa traçado na véspera: nada de ver bezerros ou visitar a outra casa da pousada. Depois do café, mesmo sob chuva, decidimos pedalar em direção à pousada da Dona Cidinha, pelo caminho de terra. Havia chegado um casal de ciclistas, o Marcos e a Solange, de Batatais, que havia vindo de lá e informaram que o caminho não estava muito ruim, que dava para passar bem. Só havia uma poça grande, mas que era possível passar pelo lado direito. O Sr. Félix havia se referido a este trecho, dizendo que havia uma pequena ponte, onde a água estava passando por cima, formando uma mini lagoa, intransponível a seco. Mas como a maior parte do trecho seria de declives, botamos o pé na estrada. Ou o pneu, né?
De saída, uma íngreme subida, asfaltada, mas que provocava a sensibilidade de todos os músculos desgastados do esforço da véspera. Com muito custo, chegamos ao topo e iniciamos a descida pela estrada de terra. E aí ocorreu um encontro inusitado: cruzamos com um elegante senhor que caminhava em sentido contrário. Camisa e calça social, capa de chuva sobre o corpo e a mochila, chapéu na cabeça.
- Bom dia!
- Bom dia, respondeu.
- O senhor mora aqui?
- Não! Estou caminhando.
- Tem propriedade por aqui?
- Não, estou fazendo o Caminho.
- Ah, está fazendo o Caminho da Fé?!
- É...
- Nooooooooooossa! O senhor parece um lorde inglês. Como é o nome do senhor?
- Hélio!
- E de onde o senhor é?
- Sou de Patrocínio Paulista, perto da divisa de Minas.
E foi assim. O Sr. Hélio, que disse que vai completar 70 anos de idade e que caminha de traje social, vinha vindo desde Mococa e pretendia dormir em São Roque da Fartura. Indicamos para ele a Pousada Paina e lhe dissemos que ele seria muito bem atendido lá. E depois nos despedimos, desejamos-lhe boa caminhada e... Esquecemos de fotografá-lo!
Não demorou muito para chegarmos ao trecho pior: além do barro natural da estrada, haviam passado uma motoniveladora poucos dias antes e após o trânsito de alguns tratores, vocês imaginem como ficou (foto 05).

Foto 05
Não descemos montados, pois escorregava muito e grudava tanto barro no pneu que até para descer tínhamos que empurrar a bicicleta. Saindo do trecho pior, continuavam os problemas: o pedal travava e não era possível pedalar em primeira marcha. O jeito era uma ou duas pedaladas para frente, girar em falso o pedal para trás, mais uma ou duas pedaladas para a frente, voltar a girar o pedal para trás e ir caminhando aos poucos. Ainda bem que eram poucas subidas...
E chegou a lagoinha. Tentamos atravessar pedalando, mas não teve jeito: a bicicleta parou no meio da água suja e tivemos que pisar na poça e empurrar.
Seguimos, logo nos aproximamos da Pousada da Dona Cidinha e a poucos metros da entrada, três motoqueiros trilheiros nos alcançaram, com suas roupas coloridas e barro por todo lado. Iam para São João da Boa Vista e havia uma bifurcação na estrada que os estava deixando em dúvida. Indicamos o caminho e seguimos, encontrando, já na entrada da pousada, o Júnior (filho da Cidinha), sempre com sua moto de trabalho. Trazia nas costas uma bomba de pulverização e estava, segundo ele, se dirigindo a uma plantação de batatas para “sulfatar” as plantas que, com o excesso de chuvas, estavam sujeitas a doenças. Com uma trégua da chuva, mesmo sendo domingo e ainda de carnaval, lá foi ele executar o seu trabalho.
Terminamos de chegar e a Cidinha veio ao nosso encontro, com sua eterna
festa, sempre nos recebendo extremamente bem e com muita alegria. Abraços de cumprimentos a ela e ao Chico, seu marido. Antes do banho, esguicho nas bicicletas para tirar o barro. A Cidinha tem uma mangueira de pressão no curral, levamos as bicis para lá, lavamos, depois as deixamos secando.

Foto 06
 Estávamos nos preparando para o almoço, quando chegaram três novos peregrinos ciclistas (foto 06): Roberto, Eduardo e Cláudio, da Vila Guarani, Jabaquara, São Paulo. Não quiseram almoçar, carimbaram suas credenciais, se reabasteceram de água, tiraram dúvidas sobre a seqüência do caminho e logo partiram. Pretendiam chegar a Aparecida em cinco dias. 

Almoçamos salada de alface, abóbora e pepino, com um excelente tempero preparado em separado, arroz, feijão, macarrão e leitoa! Aff! A sobremesa, na casa da Cidinha, é um negócio à parte: três ou quatro espécies de doce, para escolher à vontade. Ou comer um pouquinho de cada um deles... Se me lembro bem, tinha doce de banana, de mamão, de abóbora e de leite!

Foto 07
Mal acabamos de almoçar, chegaram mais dois ciclistas: Renato e Rafael (foto 07), também de São Paulo. Duas figuras humanas extraordinárias! Foi muito divertido acompanhá-los à mesa, enquanto faziam sua refeição e nos contavam sobre suas aventuras. Renato, dentista, comemorando 17 anos de casamento, convidou o sobrinho Rafael, publicitário, para fazer o Caminho. Este alegou que não tinha roupa adequada. “Faça com o que você tiver, mesmo!”, disse o tio. Resultado: aí estavam eles e o Rafael veio com o que tinha (repare na foto): calção, meião e chuteira de futebol! Numa boa, numa muito boa! Sem stress, curtindo e se divertindo prá valer. Eles iam continuar o percurso e pretendiam dormir em São Roque. Indicamos-lhes, também, a Dona Clair. Como conhecemos bem o Caminho, passamos ao Renato dicas sobre lugares para ficar e visitar no percurso. Ele carregava tudo muito bem organizado, desde a altimetria do caminho até os telefones e endereços das pousadas. Antes que saíssem, chegou mais uma dupla, desta vez a pé, um casal: Sueli e Fernando, também de São Paulo. Vejam a foto das duas duplas, mais o Francisco e a Cidinha (foto 08).

Foto 08
A história do Fernando, antes de chegar à pousada, é engraçada. Naquele mesmo lamaçal que já citamos, ele e a Suely se encontraram com o Juninho (filho da Dona Cidinha), que estava de motocicleta. Na conversa que tiveram, disseram para o Júnior que iam ficar na pousada da sua mãe e este, que estava vestido em trajes de trabalhador rural, se ofereceu para carregar as mochilas, para aliviá-los do peso. A Suely já ia tirando a dela quando o Fernando, sem conhecer o Júnior, falou rapidamente: "Não, não, não precisa, não".  E o medo de ele sumir com as mochilas?
Antes disso, o Fernando havia se encontrado com um Sr. Alexandre, abstêmio, que lhe disse que não poderia entrar com cerveja na pousada da Cidinha. Trazendo três latinhas na sua mochila, quando a Cidinha pediu sua roupa suja para lavar, ele não quis entregar, com receio de que ela visse suas cervejas e não os deixasse ficar, sei lá! Enfiou a mochila embaixo da cama, para evitar que avistassem as latinhas. Mas a Cidinha, com sua espontaneidade, entrou lá, catou a mochila com a roupa suja e, logicamente, achou as cervejas! Pronto, pensou o Fernando, ferrou! Mas, como não era nada disso, a Cidinha tem até cervejas em sua geladeira, para servir os peregrinos, o mal entendido foi esclarecido e o Fernando pode saborear suas cervejas com tranqüilidade.

Foto 09
A pousada da Dona Cidinha (foto 09), encravada no Sítio Ribeirão Preto, fica na parte mais alta de uma montanha e o visual direto da varanda (foto 10) é fantástico. À noite, com tempo bom, que não era o caso naquele dia, podem-se avistar as luzes de 11 cidades da região, desde São João da Boa Vista até Casa Branca. Pela situação da entrada da pousada, dá prá ter uma idéia de como estavam as estradinhas por lá!
Na manhã seguinte, depois do delicioso café da manhã, composto de leite, café, chá, pão e manteiga caseiros, bolachinhas de nata e pão de queijo, partimos de volta para São Roque da Fartura. Fernando e Sueli já tinham saído há algum tempo. Nós os alcançamos alguns quilômetros adiante, um pouco antes de passar novamente pela “lagoa” de lama.
Foto 10
Só que, desta vez, o “reservatório” parecia estar um pouco menos cheio e conseguimos fazer a travessia sem pisar na água, passando apenas a bicicleta por dentro da poça e pisando no capim em uma das laterais da estrada. Mais adiante, voltamos a reencontrar a lama densa e pegajosa daquele trecho pior do caminho, cuja foto já mostramos, e não havia como pedalar. O jeito era empurrar a bicicleta e, de vez em quando, tirar o excesso de barro grudado nos pneus e outras partes da magrela, para poder avançar pouco a pouco. Ao chegarmos de volta à Pousada Paina, lavamos as bicicletas com uma mangueira de água e depois fomos conhecer os bezerros que o Sr. Félix cria. Ele entra no pasto, bate com as mãos no cocho e os chama. Aos poucos, eles vão se levantando de onde estavam deitados, ruminando seus capins e vão-se aproximando. São bem mansos e a gente até pode até tocar neles, embora eles não gostem muito do contato.
O dia, porém, nos reservava uma agradável surpresa. Conhecemos, naquela tarde a netinha mais nova do Sr. Félix e D. Clair. É uma figura! Lindíssima, adora tirar fotografias, fazendo poses e mais poses para a felicidade dos avôs corujas. Chama-se Maria Amélia e tem dois anos de idade. O cachorrinho é o Bandido (figura 11).

Figura 11
Mais tarde fomos ver a outra casa da Pousada, mais acima. É uma casa antiga, de piso de madeira, com dois quartos que tem camas de casal e outros dois com beliches. Há uma pequena cozinha com fogão e mesa para refeições rápidas.
Naquela noite, após o jantar, veio visitar os pais a filha de Dona Clair, Evandra, com seu marido Paulo, pais da Maria Amélia. Veio também uma irmã de Dona Clair, Gina, com seu marido. Jogavam trilha, contavam histórias e minha esposa preparou a sobremesa: virado de banana. Foi o maior sucesso! Receita mineira que agradou a todos, muito simples de fazer: corte oito bananas prata em rodelas de até meio centímetro de largura. Corte também um pedaço de queijo minas, de preferência fresco, em quadradinhos e reserve. Pode ser também outros tipos de queijo, como mussarela, por exemplo. Mas o que fica melhor é o mineiro. Leve a banana ao fogo, numa panela com duas colheres (de sopa) de manteiga. Adicione quatro colheres (de sopa) de açúcar e uma pitada de sal, mexendo sempre. Quando a banana estiver começando a amolecer, acrescente o queijo e uma porção de farinha de milho, a gosto. Mexa mais algum tempo e desligue o fogo. É um pitéu!
Partimos na manhã seguinte, mais uma vez pelo asfalto, em direção a Divinolândia. Como continuava chovendo praticamente direto, desde o dia 28 de fevereiro, o mais sensato era evitar a estrada de terra. O mais engraçado é que, ao ver-nos virando para a esquerda, na saída de São Roque, um senhor que passava protestou: “Ei! Está errado! É pro outro lado!”. De fato, o Caminho cruza a estrada asfaltada e sobe do outro lado. Mas não era o nosso destino desta vez. Rumamos em direção à estrada Vargem Grande/São Sebastião da Grama. Depois, no trevo, viramos à direita até São Sebastião. A certa altura, alguém semeou girassóis à beira da estrada. E aproveitamos para eternizar o momento (foto 12). Estes trechos não têm acostamento asfaltado. No trevo de São Sebastião viramos à direita, em direção a Divinolândia. Paramos sobre a ponte para comer as bananas que trouxemos da casa do Sr. Félix. É bom para repor as energias e auxiliar na redução da possibilidade de cãibras. Seguimos, então, agora, felizmente, com acostamento asfaltado. Chegamos perto das 13 horas em Divinolândia. Almoçamos, tomamos um banho no Hotel Lunayma, onde havíamos deixado as malas-bike, fomos para a Rodoviária, desmontamos e embalamos as bicicletas, exatamente a tempo da chegada do ônibus. Enquanto fazíamos isso, aproximou-se de nós o Sr. João, acompanhado pelo filho. Ele tem um pesqueiro 500 metros adiante do trevo de Poços de Caldas, na direção de Caconde. Anda diariamente de bicicleta e convidou-nos para ir visitar a sua propriedade. Futuramente, certamente iremos. Houve tempo também para um papo com o Sr. José Donato, taxista, que nos orientou na chegada, sobre as estradas asfaltadas da região. Somos muito gratos a todos. Gosto sempre de repetir: são os anjos do Caminho.


Foto 12

Embarcamos às 15h20min. Sempre sob chuva...

quinta-feira, 3 de março de 2011

“Um strike macabro” ou “Carros versus bicicletas”

De repente, o país fica estupefato. Atônito, assiste ao vídeo em que um carro arremete em velocidade contra ciclistas. E corpos e bicicletas voam pelo ar, num inusitado e macabro strike, enquanto o automóvel desaparece.

Aparentemente, no episódio, além da atitude machista (no sentido de machão, tipo: se não saem da frente, passo por cima) do motorista, houve intolerância dos ciclistas, conforme vi em entrevista à Tv: “não misturamos carros com bicicletas”, ou seja, não admitiam a passagem de carros. Mas não tinham permissão pública para o evento e, portanto, autoridade para bloquear o trânsito de veículos.

Aqui, agora, é suposição: deve ter havido bate boca entre os ciclistas que faziam a segurança do grupo e o motorista atropelador. Não houve entendimento, exatamente o ponto onde eu queria chegar. Preferiu-se o confronto.

A gente vê isso por todos os lados: ninguém quer abrir mão de nada, em busca do bem comum. Consideram isso humilhação, sei lá. Se a pessoa não encara, é fraca, covarde. É a famosa “lei de Gérson” imperando: Não cedo um milímetro, mesmo que isso pudesse beneficiar uma comunidade...

E as cidades não estão preparadas para os ciclistas. Elas são desenvolvidas do ponto de vista do automóvel. E as bicicletas não são simplesmente um meio de transporte, elas revelam a opção por qualidade de vida. Muita gente está preferindo, cada vez mais, ir ao trabalho, por exemplo, de bicicleta. Não é só lazer. É opção de exercício. É curtir o caminho, é levantar um pouco mais cedo, o que também é saudável, para aproveitar melhor o percurso, é tornar o seu dia-a-dia mais prazeroso, menos correria. 

Como diz o Engenheiro José Luiz Portela, na Folha de São Paulo, “o caminho para uma metrópole mais amigável é criar uma infraestrutura ampla, geral e irrestrita para a bicicleta. Um sistema cicloviário que permita trafegar de bike pela cidade”.

Ainda bem que vão aumentando sempre as pessoas que pensam assim. Como a Renata Falzoni, também citada por Portela, que batalha constantemente pela criação de meios e regulamentação para o uso da bicicleta. A continuar assim, vai chegar o momento em que os poderes constituídos não terão como continuar ignorando a necessidade de propiciar condições de tráfego aos “bicicleteiros”.

Volto a falar de Ribeirão Preto, que é a cidade onde moro, assunto a que já me referi anteriormente: uma topologia plana ou com aclividade mínima, perfeitamente transitável por bicicletas. Por que não há ciclovias? Quando será que nossas autoridades vão perceber que a bicicleta pode representar a opção para desafogo do trânsito, redução da poluição, melhoria do condicionamento físico do cidadão, maior qualidade de vida? Sem falar que obras para acomodar bicicletas certamente custarão muitas vezes menos do que as que se destinam aos automóveis.

Será que algum dia, mesmo sem considerarmos que o espaço territorial do Brasil é imensamente maior, chegaremos a ter uma estrutura cicloviária como a da Holanda, por exemplo, que chega a ter quase 20 mil km de extensão? Onde o número de bicicletas chega a ser o dobro do número de carros? Onde cerca de 40% da população faz suas viagens diárias de bicicleta?

Sonhar também não ofende...